ENFRENTANDO A MINHA TEMPESTADE
ENFRENTANDO A MINHA TEMPESTADE
Caminhava sem rumo. Apenas
caminhava, sem saber o que poderia acontecer pois a hora não era propícia para
estar na rua. Madrugada de um dia de inverno úmido e noite sem estrelas, céu
fechado, enferruscado e nervoso, vindo algum brilho apenas entre as nuvens
extremamente escuras por raios que borbulhavam e ensurdeciam com seus altos
rumores, causando medo a quem estivesse suscetível a medos. Eu não. Seguia em
frente sem dar a mínima importância para todo o deprimente cenário que se
apresentava à minha frente, a cada passo que dava. Não via ninguém nas ruas por
onde passava. As casas todas enclausuradas, completamente fechadas e na mais
plena escuridão, algumas atreviam-se a manter a luz acesa, provavelmente na
tentativa de sair do breu que a madrugada proporcionava. Eu na rua, na completa
e total solidão.
Continuava minha caminhada sem
saber para onde ir, apenas seguia em frente, naquela rua imensa, larga, com
enormes árvores que revolviam pelo vento que as fazia farfalhar palavras que
ecoavam nos meus ouvidos dizendo-me:
- Vai embora, os espíritos estão
soltos e querem te levar! Eu, desafiadoramente olhava para elas apenas as
considerava como meras árvores que nada podiam fazer pra mim. Estava seguro de
mim, mesmo com todas as condições nada favoráveis porporcionadas pelo tempo.
Era uma tempestade que estava chegando, conforme a previsão do tempo visto há
algumas horas na televisão:
- Forte tempestade, de ventos
acima de 100 km/h com fortíssimas chuvas estão chegando por volta das 3h da
madrugada. Alerta para não saírem de suas casas pois há risco de
desmoronamentos, quedas de árvores e alagamentos...Foi neste momento que decidi
desafiar a natureza e sair na madrugada para presenciar tudo o que viria e
testar minha capacidade de enfrentar desafios e as intempéries da natureza.
- Saia daqui, vá pra casa, a
tempestade vai aumentar. Busquei de onde vinha
essa voz e a encontrei ao passar por um poste que remexia-se todo pelo
forte vento que estava a me carregar, meus passos já nem eram meus, pois estava
sendo arrastado e levando-me para onde eu gostaria de ir, bastava me levar. O
poste já sem iluminação, dizia-me para sair da tempestade porque nem ele sabia
se continuaria em pé.
– Vá embora, para te abrigar
melhor, está vindo coisa pior. Eu continuava sem dar ouvidos e o vento me
levando.
A chuva que antes era até fraca,
começou a ficar fortemente forte machucando minha pele, pois estava com camisa
de mangas curtas, sem agasalho. Minhas poucas roupas estavam completamente
enxarcadas, meus pés já estavam encobertos pela água que escorria pelas ruas
não sendo mais possível enxergar o meio fio das calçadas. A água das chuvas
fortes e caudalosas já formavam marolas e escorriam desesperadas para dentro
dos pátios inundando as casas e comércios como podia, com seu poder como
natureza rebelde com vontade de se vingar.
Queria sentir tudo, que estava
previsto, em mim. Eu nada respondia aos
conselhos e seguia em frente, ou melhor, me deixava levar pelo vento. Galhos
das árvores chocavam-se em mim, sem dar tempo e nem mesmo queria desviar para
evitar que me machucassem; queria me machucar, queria sentir dor, queria ver
meu sangue escorrer sobre minha pele imaculada, sem manchas, sem ter vivido
nada dessa vida que todos vivem e conseguem contar suas histórias. Mas nada
acontecia, nem um arranhão, nada. O vento aumentando cada vez mais, sentia-o
passar sobre meu rosto o arranhando deixando-me com a sensação, mesmo na chuva,
de uma queimação, tamanha a força com que incidia sobre minha pele que se
iriçava toda e mantinha-se incólume, aguentando firme porque assim eu queria
que fosse. Sentia prazer. Sentia satisfação. Sentia-me vivo finalmente.
- Voooou te deeeerruuuuubaaaar
seu veeeerme! Tuuuuu nããããão coooonseeeegueeees aaaagueeeeeentaaaaar miiiiiinha
fooooorça, eeeeeu sou a naaaatuuuureeeeeza e tuuuuu não ééééés naaaada! Assim o
vento sibilava essas palavras nos meus ouvidos e apenas o sentia, o escutava
mas não ouvia nada. Estava decidido a enfrentar toda e qualquer barbárie, toda
e qualquer dificuldade, toda e qualquer situação que se apresentasse à minha
frente.. Tomei a decisão de enfrentar e me descobrir através desse
enfrentamento com a natureza bravia que queria arrastar a tudo e a todos como
forma de protesto pelo descaso de como a estão tratando.
Seguia em frente. A tempestade
castigando mais e mais. Eu aguentando, sem nem pensar em voltar. Voltar
representaria derrota de um objetivo, seria retrocesso no meu processo de uma
nova vida, de um novo pensar, de um novo agir. O enfrentar toda aquela
tempestade seria a libertação do meu eu negativo, do meu eu inseguro, do meu eu
que não se amava. Seguia em frente, mesmo sem ver nada por onde andava, mesmo
sem saber onde estaria pois já passaram-se muito tempo, não importando quanto,
pois pra mim, quando a tempestade passasse eu pararia. Essa era aminha
proposta, esse era o meu objetivo.
A partir do momento que
conseguisse superar tudo que sabia, tinha ideia que iria enfrentar diante
tamanha tempestade que a natureza proporcionava, tinha certeza absoluta que
conseguiria superar com galhardia qualquer tempestade advinda e criada pelas
pessoas, que nem se comparam ao poder da natureza. Esse pensamento me dava
forças para continuar e sabia que valeria a pena. Já estava sentindo-me exausto
fisicamente mas a fortaleza estava nos meus pensamentos, nos meus objetivos
traçados.
Meu corpo estava no ponto de
frangalhos, minhas roupas eram farrapos que mal o cobriam. Nem mesmo conseguia
chorar, pois não sentia tristeza por tudo e sim muita alegria, mas assim como
chorar não valia a pena todo o esforço de derramar lágrimas ínúteis pois seriam
levadas pela chuva, meu sorriso não esboçava embora estive embevecido e orgulhoso de mim por estar superando e
aguentando com galhardia aquela tremenda tempestade da vida. Contive as
lágrimas para não desperdiçá-las e esbocei um sorriso para tornar o que ainda
tinha para enfrentar, mais fácil.
Mesmo com todas as dificuldades
que se apresentavam cada vez mais intensas à medida que o tempo passava pois já
demonstrava desgaste físico pelo enfrentamento de tudo que surgiu, meu espírito
se vangloriava e fazia-me sentir um êxtase de contentamento diante da
capacidade que eu tive de superar esses desafios.
A noite já começava diminuir sua
intensidade, permitindo-me ver alguma coisa diante dos meus olhos que
permaneceram serrados a maior parte desse tempo todo que permancei na
tempestade. Quando abri os olhos deparei-me com os estragos causados pelo vento
e as chuvas. Não havia sobrado praticamente nada. Mas eu estava ali, incólume.
Casas arrastadas, destruidas, postes caídos, fios soltos, árvores imensas
estavam caídas, pedindo socorro. Carros que estavam nas calçadas foram
arrastados e se aglomeraram, num abraço coletivo na tentativa de sobreviverem a
tamanha derrocada. Algumas buzinas berravam na tentativa de chamarem por
socorro. Mas nada, sinal algum de que alguém apareceria. Ainda tinha
tempestade. E eu ali, observando a tudo.
Aos poucos, quando a água foi se
esvaindo por bueiros cheios e por todo lugar que podia se abrigar de sí mesma,
deixando rastros da sua fúria, as pessoas foram abrindo as janelas e portas de
suas casas para verem o estrago da tempestade. Eu via a todos, mas ninguém me
via. Eu sentia o que eles sentiam, mas eles não conseguiam sentir o que eu
sentia, o que eu sentí.
Olhei à minha volta e a
destruição era de uma dimensão incalculável. Vagarosamente e cautelosamente as
pessoas tomava conta das ruas comentando o que passaram e o que estavam vendo.
Continuavam as mesmas de sempre. Eu não.
Comecei a caminhar de volta para minha casa. – Será que ainda tenho casa?
Meu caminho seria longo e por onde passava via aquelas cenas de casas,
asfaltos, carros, tudo revolvidos, tudo fora do lugar e os mesmos, sempre os
mesmos comentários e o mesmo sentimento nos rostos das pessoas, de terem
perdido tudo, mas não consegui identificar em nenhum o sentimento de culpa por
tudo ter acontecido por seus deleixos, por seus malscuidados e assim por
diante. Continuavam os mesmos. Eu não.
Continuava a caminhar e a pensar
em como os seres humanos são risíveis. Mesmo passando por toda e qualquer
dificuldade, continuam pensando e agindo de forma igual. Alguns até conseguem
mudar, porque suas consciências se abalaram e admitiram, mas a grande maioria
cotinua na sua incapacidade de se dobrar ao orgulho de entender que não há
diferença entre nenhum de nós, somos todos, todos, iguais em tudo, mas em tudo
mesmo, não importa se rico ou pobre, feio ou bonito, tudo é uma questão de
tempo para na morte ficarmos todos iguais mesmo, apenas virados em pó.
Chegando perto de onde morava não
senti perturbação alguma ao que poderia ter acontecido na minha casa. O que
tiver de ser, será. Fui me aproximando e percebendo que nada havia acontecido.
Não senti nada, nem mesmo alívio. Aliás, pensei até que eu deveria merecer que
a casa estivesse destruída para tudo ser reconstruído. Mas, se isso não
aconteceu é porque não deveria ter acontecido. Bastou eu viver tudo aquilo que
enfrentei. Aguentar tudo que aguentei diante tamanha tempestade.
Entrei pelo portão, caminhei até
à porta e todos os familiares estavam lá, esperando por mim. Ao verem-me todo
esfarrapado, roto, correram até mim que ficara parado na porta olhando para
todos. Abraçaram-me proferindo palavras que nao conseguia decifrar. Todos
falando juntos,, ao mesmo tempo, sem pausa, aflitos, e eu sem entender nada.
Apenas sentia seus braços sobre meu corpo todo arranhado, todo sujo, enlameado,
tomado de sangue; suas mãos queriam me tocar e o alvoroço por me verem era
fervoroso. Eu era amado por eles e somente eu não sabia. A minha tempestade
interior passou. Eu era um outro eu.
JOSÉ FERNANDO MENDES – 4/4/2025 –
15h53
Comentários
Postar um comentário