O DESPERTAR PARA A VIDA

 

O DESPERTAR PARA A VIDA

Hoje acordei com uma preguicinha gostosa, vontade de ficar na cama, curtindo aquele barulhinho da chuva sobre o telhado; mas como não sou acostumado a ficar muito na cama, mesmo sem ter necessidade de levantar, acabei levantando, me vesti, e ao abrir a janela para ver o dia que, mesmo chuvoso, sempre é esplendoroso e tem algo a nos mostrar, vi uma revoada de diversos pássaros bem perto da minha janela, pois tem, na minha rua, muitas árvores, que eles adoram revoarem e fazerem a sua festa particular se aproveitando e se exibindo desse dom maravilhoso que Deus lhes deu de poderem voar, irem a todo e qualquer lugar, a toda e qualquer altura, conforme a sua vontade.

Para nós, seres humanos, Deus nos deu a capacidade de voar em pensamentos e imaginação, assim como estou viajando nesse momento, e naquele momento que vi aqueles belos pássaros: Bem-Te-Vi, Sabiá, Pardal e mais uns dois tipos que não consegui identificar, tamanha era a revoada e a gritaria que faziam. Fiquei encantado pelo chilrear de todos eles, em alto e bom som, fazendo piruetas, batendo as asas forte e delicadamente para conseguir vencer a chuva que se apresentava intensa, mas eles, na total simplicidade e capacidade de superar toda e qualquer tempestade que pudesse acontecer, faziam a festa.

Meus pensamentos flutuavam e se atiravam naquela chuva gostosa sem se molhar, sem senti-la friinha, simplesmente os pensamentos curtiam aquela sensação de liberdade. “Como gostaria de estar ali, junto com aqueles pássaros, que, mesmo molhados, não adoecem, não sentem nada, apenas sentem o sentimento de liberdade, que eu jamais sentirei” – Falei comigo mesmo, não tinha ninguém com quem compartilhar tamanha euforia nos meus pensamentos.

O encantamento continuava até que um Bem-Te-Vi adulto e macho que assim identifiquei pela sua plumagem colorida, pousou no fio que liga minha casa ao poste que nos dá energia e ali ficou por um bom tempo, observando seus amigos a voarem de forma magistral e encantadora, e eu a observá-lo e a conversar com ele, como se ele estivesse a me ouvir, mas isso não importava, porque só queria mesmo é passar pra ele o quão bem ele estava me fazendo ao  ficar perto de mim.

- Oi Seu Bem-Te-Vi, como vais? Viestes aqui para alegrar meu dia? – E ele nem aí para o que eu dizia, mas mantinha-se ali, no fio, de vez em quando espanava suas penas para tirar o excesso de água da chuva que o encharcava, mas continuava a me fazer companhia.

- Sabias que eu estava precisando de companhia? – Continuava a conversar com ele, que me olhava de soslaio, não sei se me escutando, mas sei que fazendo a parte dele: me fazendo companhia.

- Sei que estás aí é porque percebestes que eu precisava de alguém ou alguma coisa para me deixar feliz, com mais vontade de viver. A solidão está me oprimindo, não tenho mais vontade de fazer nada, nem mesmo de ser eu mesmo – E ele continuava tranquilamente sobre o fio, mesmo com a chuva que mantinha sua intensidade, mesmo com seus amigos fazendo revoadas mirabolantes, belíssimas, com seus cantares magistrais, chegando perto dele, provavelmente convidando-o para juntar-se a eles, mas ele, olhava para mim, cantarolava e se mantinha como meu companheiro dando-me força e mais vitalidade.

O tempo que ele ficou foi o suficiente para que eu pudesse tirar minhas conclusões; e ele se exibindo para mim. O belo Bem-Te-Vi,  sentia minha presença na janela, bem próxima a ele. Ele me via, mas eu não o assustava. Eu não era perigo. Assim ficou, estático, apenas, de vez em quando sacudindo as lindas penas para tirar o excesso de água acumulada sobre elas. A chuva continuava, forte.

Pude ver que era um pássaro já adulto, com domínio total e absoluto de suas capacidades e poder, pois assim demonstrava por sua postura e sua tranquilidade de ficar parado por tanto tempo – sim, segundos e minutos são muito tempo para um pássaro porque não é característica deles ficarem parados, eles estão sempre dispostos e predispostos a se mexerem, voarem, explorarem os céus para onde quiserem estar, com total liberdade – e ainda, sendo observado – eles percebem, assim como nós percebemos quando alguém nos observa -. Seus olhinhos mexiam-se buscando não perder nada do que seus amigos faziam – foi um longo tempo que ele ficou parado, que até isso deu pra ver – e num instante um Barreirinho, João de Barro, fêmea pousou no muro bem à frente da minha janela, que fica a dois metros, deu umas beliscadas inquietas e faceiras nos tijolos e nas ervas daninhas que deles surgiam. Tentei conversar com ele:

- Oi barreirinho, viestes fazer companhia pra mim também? Mas ele, bem interessado na sua ação de catar barrinho para fazer sua bela casinha, imediatamente alçou voo para juntar-se a seus outros companheiros que revoavam incessantemente, sem dar a mínima para mim, como se eu não estivesse ali, observando-o, tentando me comunicar com ele. Mas, o meu amigo, o meu companheiro Bem-Te-Vi ali continuava.

- Viu só? Teu amigo não quis conversar comigo, nem mesmo me fazer companhia, assim como tu estás a fazer. Disse eu, num tom de voz mais alto que o fez uriçar-se, olhar para mim e percebi que meio assustou-se. Pensei que iria voar, iria embora.

- Desculpe-me Bem-Te-Vi, não queria te assustar, só me empolguei e falei mais alto, fique comigo, faça-me companhia mais um pouco, mas se quiseres ir, vá, já foi o suficiente esse tempo que passou comigo me aliviando das dores da vida e percebendo que a vida vale a pena. Cumpriu tua missão. – Disse isso pra ele, mas, na verdade, queria mesmo que ele ficasse, mas sei como eles são, e me conformaria com sua partida.

O Bem-Te-Vi ali, fazendo-me companhia, dando-me força e energia para fazer do meu dia mais um dia revigorado pelo que ele tinha me proporcionado. Então, assim, quando pensei sobre o prazer que ele estava me dando de o estar observando, ele ergueu suas asas, mostrando todo seu belo peitoral de penas bem amarelas, beliscou-se nas asas para retirar o excesso de água, espanou-se, mexeu a cabecinha de um lado a outro e, como a se despedir, olhou furtivamente para mim e alçou um voo lento, não mais como os outros faziam, como se estivesse a se despedir, entoando seu belo canto em alto e bom som.

Ele se foi, como se estivesse dando-me um até logo e dissesse-me que eu ficasse em paz porque assim eles também estavam, mesmo com toda aquela chuva, pois tudo eles superam, tudo eles aguentam. Assim é a vida deles e assim que deve ser a nossa.

O acompanhei em seu voo até juntar-se com seus amigos e, fazendo festa, muita festa, com muita alegria e diversão, saíram em revoada para outras árvores mais adiante.

Fechei a janela. A chuva já estava mais forte e começava a molhar minha roupa. Antes de sair da janela, olhei em busca do saber o que estavam fazendo, e já não os vi mais, pois agora, estavam indo para outra aventura, e quem sabe, outra pessoa que os observasse, os admirasse e fizesse do seu dia o mais feliz, por fazerem do seu dia, eles, aqueles belos, singelos e delicados pássaros como referência, como exemplo a ser definido em suas vidas, assim como eu fiz.

Dei as costas para a janela e fui preparar meu café da manhã, deixando a magia do que presenciei ficar no meu pensamento e dando-me a energia necessária para o resto do dia enfrentar com leveza e muita alegria no coração e no pensamento. Eu já sentia-me em paz comigo mesmo. Sentia-me outra pessoa, não mais com aquele pensamento de solidão, sem vontade para nada.

Enquanto preparava o café, em frente à janela, podia ver a chuva forte caindo incansavelmente, assim como os pássaros revoando e cantando, alegremente, aproveitando, curtindo a natureza. Pude ver vários pássaros, mas os Bem-Te-Vis, me chamavam atenção, e pensei que talvez algum daqueles poderia ser o que havia feito companhia para mim, por alguns minutos, deixando-me neste estado de total e repleta felicidade, olhando para dentro de mim, fazendo-me pensar na vida: como pode ser tão fácil, basta aproveitarmos o que ela nos dá, o que Deus nos proporciona. Simples assim.

Olhando absorto para os pássaros, escutei a água borbulhando na cafeteira, avisando que o café já estava passado e dizendo-me que já tinha feito a sua função, bastava eu pegá-la e servir-me do delicioso líquido preto que agora faria a função dele também, assim como tudo e todos fazem.

O café ficou pronto, aquele cheirinho gostoso. Peguei a cafeteira e servi-me daquele café fumegante, acolhedor. Enchi uma xícara, ou melhor, caneca. Levantei a caneca em direção aos pássaros para brindar com eles; sorvei-o, quente, sentindo aquele líquido fazendo seu percurso dentro de mim, esquentando meu corpo, mas meus olhos não deixavam de estarem ainda observando a movimentação da passarada. Retirei-me da janela e fui preparar o acompanhamento para o café. Então pensei: os pássaros não precisam preparar nada para comer, para beber, ganham tudo na natureza, por isso são tão felizes e satisfeitos com a vida que levam, com o que tem. Preparei meu sanduiche e comecei a degustá-lo.

Meus pensamentos, agora alegres, plenos, flutuavam aceleradamente. Estava com fome de viver.

 

JOSÉ FERNANDO MENDES – 30/09/2024

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