ANESTESIA

 Hoje fui anestesiado para fazer um exame de colonoscopia, meu intestino anda rebelde, aliás, a vida toda sempre foi rebelde, mas com a idade a coisa tende a piorar. Desta vez, porque é a quarta vez que faço, sai bem rápido da tal anestesia, não sei se me deram o derrubante a menos ou porque a glicose, que anda alta nas últimas três semanas não baixou muito e me senti melhor. Sei lá, mas quando sai da sala de recuperação, fui tomar um café - estava sedento, cinco dias sem comer nada, só líquidos - no bar do hospital e tomei duas xícaras de café com leite e uma deliciosa torrada com queijo e presunto  -tudo é delicioso quando se está com fome ou muito tempo sem comer, como foi o meu caso - e eis que, enquanto esperava, fiquei pensando no efeito que a anestesia faz na gente, como somos derrubados por alguns mililitros, não sei a quantidade, mas uma droga tão forte e eficaz que nos faz dormir, ou desmaiar ou morrer por algumas horas. Simplesmente apagamos e aquelas horas passam sem que saibamos o que se passa, o que fazem com a gente, seja onde for, porque não precisa ser apenas no hospital para sermos anestesiados, porque tem várias formas de ficarmos letárgicos, fora de nosso ser, fora do ar, fora da realidade. A anestesia, seja ela qual for, nos deixa fora de tudo, dependendo da dose, nos faz ficarmos eternamente fora de sintonia, sem sabermos quem somos, o que fazemos e o pior de tudo o por quê vivemos. Nada mais importa quando estamos anestesiados, porque nada sentimos, nada falamos, nada ouvimos, nada somos. A anestesia que nos deixa letárgicos, parados, estáticos, estagnados e sem sermos nós mesmos acontece de diversas formas além dessa droga usada nos hospitais para exames e cirurgias, acontece no dia a dia de pessoas que não conseguem se manter na retidão de seus pensamentos e de sua estima, de pessoas que precisam ajuda mas não se permitem ser ajudadas, porque estão anestesiadas pelo prazer de estarem alheias às complicações da vida e preferem se atirar aos seus devaneios enquanto anestesiados. A anestesia acontece quando estamos impossibilitados de fazermos qualquer coisa mesmo vendo e sentindo a necessidade de fazer algo. A anestesia acontece quando nos permitimos deixar levar a uma vida qualquer por motivos que vimos como insolúveis, irreparáveis e irreversíveis. Tudo isso me veio à mente em frações de minutos.  A nossa vulnerabilidade é gritante e nos entregamos facilmente para que façam de nós o que querem fazer, ou devem fazer, ou precisam fazer, e assim quem somos nós a não ser um marionete nas mãos das pessoas que estão a nossa volta enquanto estamos sendo anestesiados e durante o período que perdurar a anestesia. Não estou pensando apenas numa maca de  hospital, isso que escrevi se aplica em qualquer situação que imaginarmos enquanto lemos essas palavras. Somos marionetes, manipulados pelos outros enquanto deixamos de ser nós mesmos. Assim é a vida de quem se deixa anestesiar pelas drogas da vida, pela perdição de uma vida sem valor, sem significado, sem nexo, sem amor próprio, sem amor  ao próximo, sem nada. Graças a Deus eu voltei de uma anestesia de algumas horas perdidas, não sei o que aconteceu e nem vou saber, só sei que o exame foi feito e já estou com o resultado e agora é ver o que posso fazer para não precisar mais me anestesiar, porque não gosto de me sentir marionete, eu sou dono de mim, da minha vida, da minha vontade de viver. E para tudo dou Graças Senhor.

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